sábado, 27 de dezembro de 2014

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Para que serve a utopia?



Para que serve a utopia?

A utopia está no horizonte e se está no horizonte eu nunca vou poder alcançá-la porque, se caminho dez passos, a utopia vai distanciar-se dez passos, e se caminho vinte passos, a utopia vai colocar-se vinte passos mais além.
Ou seja, eu sei que jamais, nunca, a alcançarei. Para que serve? Para isso, para caminhar.


Eduardo Galeano, citando Fernando Birri

terça-feira, 22 de julho de 2014



"Enquanto não encerramos um capítulo, não podemos partir para o próximo. Por isso é tão importante deixar certas coisas irem embora, soltar, desprender-se. As pessoas precisam entender que ninguém está jogando com cartas marcadas, às vezes ganhamos e às vezes perdemos. Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu génio, que entendam seu amor. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é."

Fernando Pessoa.



Psicoterapia

domingo, 20 de julho de 2014

Os Mecanismos de Defesa do Ego


Freud utiliza pela primeira vez o termo “defesa” em 1894 (As psiconeuroses de defesa). Os mecanismos de defesa são estratégias inconscientes que o sujeito usa para tentar reduzir a tensão e a ansiedadefruto dos conflitos entre id, ego e superego.
 
Os mecanismos de defesa do ego são formas ilusórias de resolução, pois apenas disfarçam o conflito. Segundo Freud, a nossa vida psíquica desenrola-se sob o signo do conflito, ou seja, entre a necessidade de satisfação do id e os impedimentos e proibições que emanam da sociedade e estão interiorizados no superego. O conflito é “resolvido” pelo ego, que agindo segundo o princípio da realidade, procura conciliar forças pulsionais opostas, reduzindo desta forma a ansiedade intrapsíquica. Actuando principalmente de forma inconsciente protegem o indivíduo da angústia pela não tomada de consciência do conflito.
 
A ansiedade neurótica surge quando o ego sente que pode ficar sobrecarregado pelo id, dito de outra forma, quando as necessidades do id se tornam tão poderosas que o ego sente-se incapaz de as controlar, e a irracionalidade do id pode manifestar-se através de pensamentos e comportamentos.
 
Qualquer forma de ansiedade é desconfortável daí que se procure eliminar ou reduzi-la. A função do ego é lidar com a ansiedade, para isso, segundo Freud, vai recorrer aos processos aos processos ao seu dispor, ou seja, os mecanismos de defesa do ego.
 
Recalcamento: o sujeito envia para o id as pulsões desejos e sentimentos que não pode admitir no seu ego. Os conteúdos recalcados, apesar de inconsciente, continuam actuantes e tendem a reaparecer de forma disfarçada (sonhos, actos falhados, lapsos).
 
Regressão: o sujeito adopta modos de pensar, atitudes e comportamentos característicos de uma fase de desenvolvimento anterior. Face à frustração ou incapacidade de lidar com certos problemas, a criança ou o adulto regridem, procurando a protecção sentida no passado.
 
Racionalização: o sujeito oculta de si e do outro as verdadeiras razões e justifica racionalmente o seu comportamento, retirando assim, os aspectos emocionais de uma situação geradora de angústia.
 
Projecção: o sujeito atribui a outros (sociedade, pessoas, objectos) desejos, ideias, características que não consegue admitir em si próprio.
 
Deslocamento: o sujeito transfere pulsões emoções do seu objecto natural, mas “perigoso” para um objecto substitutivo, mudando assim o objecto que satisfaz a pulsão.
 
Formação reactiva ou compensação: o sujeito “resolve o conflito entre os valores e as tendências consideradas inaceitáveis apresentando comportamentos opostos às pulsões. Ser, por exemplo, extremamente amável com alguém que odeia.
 
Sublimação: o sujeito substitui a satisfação pulsional por algo socialmente aceite. A eficácia do processo de sublimação implica que o objecto de substituição satisfaça o sujeito de forma real ou simbólica. Arte.


Psicoterapia

segunda-feira, 2 de junho de 2014

No comboio da loucura sem bilhete de ida-e-volta


Neste magnífico trabalho de António Araújo - O Trem de doidos -, somos confrontados com dados históricos que possuem uma actualidade assombrosa. A experiência que David Rosenham efectuou em 1972, podia ser replicada hoje, e os resultados seriam exactamente os mesmos.

Como se não bastasse tem ainda uma entrevista à jornalista premiada Daniela Arbex que conta a história de vida e morte do Hospício Colônia, o maior do Brasil e que se encontrou em funcionamento até aos anos oitenta.


Leiam. Obrigatório!



Psicoterapia

terça-feira, 13 de maio de 2014

Catarse - Método Catártico

Método de Psicoterapia em que o efeito terapêutico procurado é um “purgação” (catharsis), uma descarga adequada dos afectos patogénicos. O tratamento permite ao indivíduo evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afectos estão ligados, e ab-reagi-los.

Historicamente, o “método catártico” pertence ao período (1880-1895) em que a terapêutica psicanalítica se define progressivamente a partir de tratamentos operados em estado hipnótico.

O termo catharsis é uma palavra grega que significa purificação, purgação. Foi utilizado por Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia: “A tragédia é a imitação de uma acção virtuosa e realizada que, por meio do temor  e da piedade, suscita purificação de certas paixões.”

Breuer e depois Freud retomaram este termo, que exprime para eles o efeito esperado de uma ab-reacção adequada do traumatismo. Sabe-se efectivamente que, segundo a teoria desenvolvida nos Estudos sobre a Histeria (1895), os afectos que não conseguiram encontrar o caminho para a descarga ficam “coarctados”, exercendo então efeitos patogénicos. Resumindo mais tarde a teoria da catarse, escreve Freud: “Supunha-se que o sintoma histérico tinha origem quando a energia de um processo psíquico não podia chegar à elaboração consciente e era dirigida para a enervação corporal (conversão) […]. A cura era obtida pela libertação do afecto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reacção).

A catarse nem por isso deixa de ser uma das dimensões de toda a psicoterapia analítica. […] Do mesmo modo, a perlaboração, a simbolização pela linguagem, estavam já pré-figuradas no valor catártico que Breuer e Freud reconheciam à expressão verbal: “É na linguagem que o homem encontra um substituto para o acto, substituto graças ao qual o afecto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira…”




Vocabulário da Psicanálise – J. Laplanche & J.B. Pontalis 





Psicoterapia


"Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos."

Anaïs Nin  

segunda-feira, 5 de maio de 2014



(...) mãos fechadas, é assim que nascemos, pensou ele, com os punhos cerrados, o meu filho não agarra em nada senão nele mesmo, mas aos poucos aprenderá a abri-las, aprenderá que para ter coisas é preciso abrir as mãos, só assim se consegue amar, não é (...)

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

domingo, 27 de abril de 2014

Liberdade


Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.



Paul Éluard

trad. Jorge de Sena

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A dor


Sei, hoje, exactamente aquilo que falhei:
não senti a dor até ao fim. Fugi
antes que ela se tornasse coisa nenhuma
e fosse já nada diferente de mim, do que sou
antes, depois, durante as coisas sensíveis
tangíveis, tacteadas, apalpadas na escuridão
dos anos.
Sem luz nem cor nem beleza possível
de julgar.
E, súbito, tudo são corpos a cair contra corpos
imaginar é o dom que lhes foi dado.
imaginar a beleza e a fealdade, o longe e o
perto que se está de cada coisa.

Nenhuma vitória me ensinará mais que um naufrágio
nenhuma vida é mais vida por ter mais risos que palhaços
menos esperas que encontros.
A vida eterna não promete o sol nem o calor nem a riqueza nem
abraços. Os livros
falam da paz. E da paz só. A paz apenas prometem, por isso
sei, hoje, o que sonhar para a morte.
Subo e desço das camas, das cadeiras, dos lugares
agarro-me ao que acaba como se o mar me fosse engolir depois
enquanto as trevas rodam em torno da terra e
deixam intervalos de luz,
corro contra as horas
para não chegar tarde, para não ser esquecido
para não me mentir

mas o que importa é subir e descer, manter-se
à superfície de si mesmo, não interessa em que mar
as camas, as cadeiras, os lugares, os corpos sem cor
continuarão antes depois durante os intervalos de luz
e só eu poderei responder à morte
a que preço está a vida eterna,
em quantos anos pagarei
os juros do empréstimo
com que comprei a paz.

Alexandre Borges – Heartbreak Hotel


Psicoterapia

quinta-feira, 27 de março de 2014

A SÍNDROME DO BURN-OUT

“Oito em cada dez portugueses estão exaustos e querem mudar de emprego”: eis o título de uma notícia do PÚBLICO, na semana passada, onde se divulgava o resultado de um inquérito.
Esta forma de exaustão é global, é uma epidemia, e foi baptizada em língua inglesa com um nome cuja tradução ainda não foi fixada com rigor nas línguas latinas: burn-out. Diz-se que o pai do conceito é Graham Greene, que o utilizou como título de um romance, de 1960, A Burnt-out Case (a ortografia do termo inglês tinha, então, um t final).
O burn-out é uma doença da civilização, exclusivamente ligada aos aspectos que caracterizam a organização contemporânea do trabalho.
Distingue-se, pois, da depressão, que não precisa do contexto laboral para se revelar.
Esta doença do bom cidadão trabalhador, que sofre um “incêndio” metafórico (como sugere a palavra inglesa) apresenta os seguintes sintomas: fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, incapacidade de controlar o stress, despersonalização e impotência.
Esta doença do “too much” é reveladora de um demónio – o demónio do trabalho – que retira o mais precioso dos nossos bens: o tempo. E a palavra “demónio” justifica-se plenamente porque os estudiosos desta doença social dizem que ela tem um equivalente na acédia medieval – esse mal de que sofriam os monges na Idade Média e que os fazia perder a fé no sistema divino. Por conseguinte, o burn-out é para as empresas o que a acédia foi para a Igreja.
Em média, o tempo de trabalho é hoje superior ao que vigorava no século XIX. Todas as utopias que prometiam uma sociedade do lazer e viam no progresso tecnológico um meio que nos libertaria do trabalho foram desmentidas. Pior do que isso: a evolução e multiplicação dos utensílios, em vez de serem factores de libertação, dilataram o tempo de trabalho e elevaram à máxima potência a lógica económica que se realiza na corrida pelo aumento da produção e do lucro.
Evidentemente, isso só foi possível pondo em prática métodos de gestão que submetem, controlam, pressionam, induzem a uma competição que quebra solidariedades e criam delatores. Veja-se, aliás, como o apelo governamental à delação – algo que outrora seria considerado abjecto – se começa a generalizar.
O burn-out consiste em ultrapassar o limiar da resistência a uma adaptação violenta, coerciva, que, no limite, exige dos empregados que eles sejam “empreendedores” e, até, que os artistas se inclinem perante os códigos e as prerrogativas das indústria culturais.
Adaptação e flexibilidade são os nomes da actual ideologia do trabalho e da produção.
A descoberta desta doença chamada burn-out deve-se muito a um médico americano (nascido na Alemanha em 1926), chamado Herbert J. Freudenberger, que a diagnosticou em si mesmo.Ao tratar de toxicómanos numa clínica de Nova Iorque, ele descobriu a certa altura que estava mais doente do que eles.
Esta situação é a regra em que vivemos: os hospitais estão cheios de médicos doentes; as escolas estão cheias de professores que temem mais as aulas e a avaliação a que estão submetidos do que os alunos que eles ensinam e avaliam; os guardas das prisões estão tão encarcerados como os detidos que eles vigiam. Não há exterior ao tempo de trabalho. E, imersos em tudo isto, aqueles que dizem combater o capitalismo, ou pelo menos as suas lógicas mais nefastas, não fazem senão exaltar o trabalho e fixar as formas de vida que ele implica. O axioma de Carl Schmitt, segundo o qual o nosso inimigo se assemelha a nós, encontra aqui uma bela confirmação.
António Guerreiro
in Ípsilon (21.03.2014)


psicologia clínica

domingo, 16 de março de 2014

Retornos



Retornos

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe --mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.


SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.



Psicoterapia

terça-feira, 11 de março de 2014

Nós somos um bocadinho mais que uma reacção química?!


Recentemente estive a conversar com um jovem sobre a sua ansiedade, que era sentida por ele como muito intensa. Quando lhe perguntei acerca do que seria a sua ansiedade ele disse que não sabia. Quando lhe sugeri que podíamos tentar explorar sobre o que se tratava a ansiedade ele disse que era tão intensa que devia ser bioquímica. Isso significava que para ele a ansiedade não podia ser entendida como sendo psicológica, mas tinha que ser tratada como parte da sua “doença”. Eu reconheci que a ansiedade envolve bioquímica, mas mostrei-lhe que também existem experiências e interpretações das experiências que despoletam reacções químicas. Por exemplo, se alguém aponta uma arma na nossa direcção, provavelmente vamos sentir um intenso processo bioquímico dentro de nós mas a experiência não seria “apenas bioquímica”.

Se as pessoas procuram compreender (se) e trabalhar os seus problemas emocionais é essencial que tenham curiosidade sobre as suas experiências/vivências e possam reflectir sobre o que os pode ter desencadeado. Por vezes essa curiosidade ou reflexão trás importantes informações sobre essas experiências, e pode, por vezes, permitir a identificação do que fez despontar a ansiedade e dessa forma possibilitar a sua resolução. Claro que situações de ansiedade e de depressão, normalmente têm origem em experiências muito mais complexas, e implica uma maior reflexão.

Vivemos numa sociedade que não gosta da complexidade e da reflexão profunda, de modo que já temos um viés na direcção de pensar que as emoções perturbadoras não fazem sentido e rapidamente concluir que se trata apenas de uma questão química. Este viés faz-nos pensar que não devemos vivenciar estados emocionais perturbadores, por isso temos tendência a afastá-los ou a dissociá-los o que torna mais difícil entendermos as causas e decidir o que fazer com eles.

Aqueles que comercializam drogas psiquiátricas aproveitam este viés cultural para oferecer uma pseudo-explicação sedutora, de que os estados emocionais indesejáveis ​​e que não são facilmente resolvidos devem ser o resultado de um "desequilíbrio bioquímico" ou algum outro problema biológico. A nossa cultura tornou-se fortemente influenciada por esta forma de ver as coisas, ao ponto da maioria acreditar que os problemas emocionais graves para os quais não há uma explicação fácil devem ser causados por uma falha bioquímica, em vez de ser algo que pode ser potencialmente compreendido e resolvido.

O triste resultado deste esforço de marketing tem sido o drástico agravar da tendência cultural para evitar ouvirmo-nos uns aos outros e a nós mesmos. Qualquer problema mental ou emocional que não pode ser resolvido rapidamente é "bioquímico" e não vale a pena sequer tentar entender, pelo contrário, devemos partir logo para as drogas.

Quando as pessoas estão traumatizadas ou quando experimentam conflitos que excedem a sua capacidade de lidar com eles dá-se uma dissociação. Quando a dissociação é o problema, há uma necessidade de trabalhar no sentido de uma maior compreensão e integração. No entanto, o efeito da crença no desequilíbrio bioquímico vai aumentar a dissociação. Ao invés de se questionar acerca das origens da ansiedade ou da depressão, por exemplo, a pessoa convencida de que é um desequilíbrio bioquímico procura apenas livrar-se dela sem tentar compreender a sua origem interna.

Quando as pessoas estão convencidas que os seus problemas são bioquímicos têm menos propensão em explorar o problema com outras pessoas ou com um terapeuta. E, quando o terapeuta está convencido de que o problema do paciente é "bioquímico" então, deve aconselhá-lo a procurar tratamento através da medicação. (as teorias do “ desequilíbrio bioquímico" também são óptimas para explicar as falhas de compreensão por parte dos terapeutas!)


O resultado final desta desinformação provocada pelo marketing pode ser extremamente iatrogénica, e ser uma das causas primárias, juntamente com os efeitos secundários a longo prazo das drogas, do agravamento da saúde mental.


Adaptado e traduzido daqui


Psicoterapia

Psicoterapia - uma definição


Gostaria
que houvesse alguém que ouvisse a minha confissão.
Não um padre. Não quero que me digam os meus pecados.
Não a minha mãe. Não quero causar tristeza.
Não uma amiga. Não entenderia o bastante.
Não um amante. Seria parcial demais.
Não Deus. Ele é tão distante.
Mas alguém que fosse ao mesmo tempo
o amigo, o amante, a mãe, o padre, Deus e ainda um estranho.
Não julgaria, nem interferiria
e, quando tudo tivesse sido dito desde o inicio até o fim,
mostraria a razão das coisas, daria força para continuar
e para resolver tudo à minha própria maneira.


Poema de 1916, atribuído a uma adolescente americana de 15 anos.



Psicoterapia

domingo, 9 de março de 2014

A perda da alteridade



Este vídeo da Save the Children anda a causar furor no mundo, no mundo «civilizado», que o outro não tem YouTube. No YouTube, já conta com quase 20 milhões de visualizações. A apresentação do filme está aqui, dizendo-se que três anos de guerra civil na Síria já custaram a vida a 11.000 crianças. Há um milhão de crianças refugiadas. Mas, por mais que a estatística nos arrepie, este filme, que segundo me parece representa o que seria o crescimento e o dia-a-dia de uma das «nossas» crianças se vivesse na Síria, é o nos que causa mais incómodo e indignação. Como se, para nos sentirmos sírios, necessitemos de ser figurados como «nós», ocidentais e caucasianos, vivendo nas nossas cidades, nas nossas escolas, andando nas nossas ruas e saltando por parques relvados. Talvez isto seja a prova de que perdemos o sentido da alteridade, a capacidade de nos colocarmos por inteiro na posição do outro – e que só através da representação dos outros como «nós» somos capazes de nos comover e impressionar. O mundo é um lugar estranho.



psicologia clínica

A Interpretação dos Sonhos


“A interpretação dos sonhos é a via régia que conduz ao conhecimento do inconsciente da vida psíquica.” S. Freud

Na “Interpretação dos Sonhos” (1900) S. Freud lança ideias inovadoras que vão permitir uma nova compreensão dos sonhos, defendendo que se trata de uma actividade psíquica organizada e com leis próprias. O sonho é produzido pelo próprio sonhador e não provém de uma fonte exterior a ele. Desta forma demarca-se dos métodos tradicionais de interpretar os sonhos recorrendo à decifração em função de chaves simbólicas culturais associadas a uma previsão do futuro.

A melhor metáfora para explicar de forma simplificada o facto de o sonho ter normalmente uma aparência estranha e confusa talvez seja a da “censura”.

No seu percurso de formação o sonho passa por uma censura (situada entre o inconsciente e o consciente) que determina se ele pode ou não prosseguir os seus intentos. Para conseguir enganar a censura ele necessita de mudar a sua aparência através de um mecanismo de distorção (trabalho do sonho: processo que transforma o conteúdo latente em conteúdo manifesto). O sonho é composto pelo conteúdo latente (pensamentos/desejos que estão ocultos e serão mais tarde descodificados/interpretados recorrendo ao método da associação livre) e pelo conteúdo manifesto (corresponde aquilo que o indivíduo sonha e se recorda de forma mais ou menos imprecisa quando acorda) que normalmente é composto por materiais/acontecimentos recentes (restos diurnos).

O sonho manifesto, ou seja, aquilo que a censura permitiu que viesse até à superfície da consciência, foi alcançado devido a uma máscara de aparência inócua e de significado praticamente impenetrável. Para transformar o sonho nessa coisa inocente/inofensiva/caótica/desconexa foi necessário recorrer a certas ferramentas: condensação (consiste em reunir num único elemento vários elementos; muito poderoso; torna o sonho difícil de entender); deslocamento (substitui os pensamentos mais significativos do sonho por pensamentos acessórios, desfocando o conteúdo importante e dissimulando a realização do desejo); representabilidade (transforma os pensamentos do sonho em imagens); elaboração secundária (consiste em apresentar o conteúdo onírico sob a forma de um cenário coerente e inteligível); dramatização (procedimento análogo ao do encenador que transpõe o texto escrito para a representação).


É através desta acção conjunta organizada que se forma o sonho, “o guardião do sono”. 



Psicoterapia

terça-feira, 4 de março de 2014

Os medos


"É a medo que escrevo. A medo penso,
A medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo.
A medo me renego, me convenço.
A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.
A medo durmo. A medo acordo. A medo
Invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.
A medo guardo confissão, segredo,
Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo e mudo".



José Cutileiro



Psicoterapia

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Vou te ligar. Vou te ligar, com certeza!


O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca

No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado
diálogo:

— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!

Isso ou variações.

Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.

Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.

Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?

A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.

Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."

Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.


 BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.



psicologia clínica

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Portas entreabertas



Não deixe portas entreabertas
Escancare-as
Ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas
Passam apenas semiventos,
Meias verdades
E muita insensatez.


Cecília Meirelles









psicologia clínica

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Felizes os normais


Felizes os normais, esses seres estranhos,
Os que não tiveram uma mãe louca, um pai bêbedo, um filho delinquente,
Uma casa em lado nenhum, uma doença desconhecida,
Os que não foram calcinados por um amor devorante,
Os que viveram os dezassete rostos do sorriso e um pouco mais,
Os cheios de sapatos, os arcanjos com chapéus,
Os satisfeitos, os gordos, os lindos,
Os rin-tin-tins e os seus sequazes, os que claro que sim, faça favor,
Os que ganham, os que são queridos até ao punho,
Os flautistas acompanhados por ratos,
Os vendedores e os seus compradores,
Os cavalheiros ligeiramente sobre-humanos,
Os homens vestidos de trovões e as mulheres de relâmpagos,
Os delicados, os sensatos, os finos,
Os amáveis, os doces, os comestíveis e os bebíveis.
Felizes as aves, o estrume, as pedras.

Mas que abram alas aos que fazem os mundos e os sonhos,
As ilusões, as sinfonias, as palavras que nos desbaratam
E nos constroem, os mais loucos que as suas mães, os mais bêbedos
Que os seus pais e mais delinquentes que os seus filhos
E mais devorados por amores calcinantes.
Que lhes deixem o seu sítio no inferno, e basta.
 


- Roberto Fernández Retamar
(tradução de Vasco Gato)



psicologia clínica