terça-feira, 27 de agosto de 2013

Os textos que eu não escrevi # 3


Quando começamos a perder quem amamos, só elefantes cor-de-rosa fazem sentido

Em que momento uma flor de lótus começa a nascer dentro de quem amamos? De nós? Desde sempre, talvez seja a resposta mais correta. Não sabemos quando ela vai florescer carregando com ela aquilo que chamamos de real. Mas sabemos que vai. E quando ela floresce dentro do corpo que amamos, o que é lógico, rotineiro, deixa de fazer sentido. (…) Isso é mais plausível para quem perde seu amor do que a enormidade do que acontece dentro de um corpo que é referência espacial na geografia cotidiana, de um corpo que às vezes é a própria casa, a única que queremos habitar.

Trabalho com o tema da morte há alguns anos e percebo que para muitos que perdem – e se começa a perder ao abrir o exame e descobrir que há uma flor de lótus em alguma parte irremovível ou com galhos longos demais – torna-se difícil viver num mundo em que os objetos são inanimados e as enguias só são vistas em filmes da National Geographic ou em pratos de restaurante japonês caro. Há um surrealismo no mundo que foi transtornado pelo advento da flor, mas que o nega, comportando-se, junto com todos os outros que por ele andam, como se não estivesse para sempre corrompido pela morte.

Quem descobre a flor de lótus no corpo de quem ama espera a cada manhã por um sinal de que o mundo de fora vai espelhar o de dentro. De que ao entrar no elevador do prédio não haverá um vizinho com seu cachorro, mas um elefante cor-de-rosa. Confrontada com a lucidez da condição humana, só é possível encontrar lógica em elefantes cor-de-rosa. Na padaria, na fila do pão, a expectativa dessa mulher é de que a moça tenha cauda de peixe, como uma sereia em terra firme, e o pãozinho francês pisque para ela da prateleira com pestanas tão longas quanto as de uma lhama. Em vez disso, nada acontece. A moça do pão é fria, quase ríspida. Ela então gagueja. Não sabe mais se pede os dois pãezinhos de sempre, porque ele gosta de pão novo, ou se pede três, por causa da flor, agora que a relação deles se tornou um triângulo. Pede dois, porque sabe que o mundo só aceitará o pedido de dois, mas sabe que está errado. E sabe que está errado porque o que não sabe é como fará quando tiver de se arrastar até a padaria para pedir um pãozinho só. Há décadas essa mulher não sabe como é pedir um pão só.

Conheci um homem que tinha medo da flor dentro do pulmão da sua mulher. Ele não imaginava o que havia lá como uma flor, mas vou chamar assim aqui. Ele nunca pôde dizer o que era ou que forma tinha. Mas quando se deitava na cama com ela à noite, escutava a respiração da coisa ou da flor. E não podia dormir. Esgueirava-se para fora da cama e passava o restante da noite assistindo a filmes na TV da sala. Perto do amanhecer ele voltava, e talvez ela só fingisse não perceber. Ele a abraçava, como fazia havia mais de 20 anos, mas não sabia a quem pertencia o coração que batia no peito dela. Numa dessas quase manhãs em que tinha seguido esse ritual agora rotineiro, dormiu e sonhou que acordava. Abria os olhos e não havia mais ela. Só a flor ao seu lado na cama – ou o que ele não ousava representar.

Volto para casa depois de assistir à Espuma dos Dias e sinto um medo irracional das flores que me rodeiam. Olho desconfiada para as orquídeas que há anos são a moldura da minha janela e que me ficam às costas enquanto escrevo. Quando a flor de lótus desabrochar em mim ou no meu amor, não digam que enlouqueci quando eu afirmar que há enguias nas torneiras ou hipopótamos voando junto com os aviões de carreira. Não há nada mais surreal do que o amor e a morte.


psicologia clínica

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Acto Falhado ou Falho


Acto em que o resultado explicitamente visado não é atingido, antes se acha substituído por outro. Fala-se de actos falhados não para designar o conjunto das falhas da palavra, da memória e da acção, mas para os comportamentos em que o indivíduo é habitualmente capaz de obter êxito, e cujo fracasso é tentado a atribuir apenas à sua falta de atenção ou ao acaso.

Freud demonstrou que os actos falhados eram, tal como os sintomas, formações de compromisso entre a intenção consciente do indivíduo e o recalcado.


Vocabulário da Psicanálise – J. Laplanche & J.B. Pontalis

psicologia clínica

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