domingo, 27 de abril de 2014

Liberdade


Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.



Paul Éluard

trad. Jorge de Sena

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A dor


Sei, hoje, exactamente aquilo que falhei:
não senti a dor até ao fim. Fugi
antes que ela se tornasse coisa nenhuma
e fosse já nada diferente de mim, do que sou
antes, depois, durante as coisas sensíveis
tangíveis, tacteadas, apalpadas na escuridão
dos anos.
Sem luz nem cor nem beleza possível
de julgar.
E, súbito, tudo são corpos a cair contra corpos
imaginar é o dom que lhes foi dado.
imaginar a beleza e a fealdade, o longe e o
perto que se está de cada coisa.

Nenhuma vitória me ensinará mais que um naufrágio
nenhuma vida é mais vida por ter mais risos que palhaços
menos esperas que encontros.
A vida eterna não promete o sol nem o calor nem a riqueza nem
abraços. Os livros
falam da paz. E da paz só. A paz apenas prometem, por isso
sei, hoje, o que sonhar para a morte.
Subo e desço das camas, das cadeiras, dos lugares
agarro-me ao que acaba como se o mar me fosse engolir depois
enquanto as trevas rodam em torno da terra e
deixam intervalos de luz,
corro contra as horas
para não chegar tarde, para não ser esquecido
para não me mentir

mas o que importa é subir e descer, manter-se
à superfície de si mesmo, não interessa em que mar
as camas, as cadeiras, os lugares, os corpos sem cor
continuarão antes depois durante os intervalos de luz
e só eu poderei responder à morte
a que preço está a vida eterna,
em quantos anos pagarei
os juros do empréstimo
com que comprei a paz.

Alexandre Borges – Heartbreak Hotel


Psicoterapia