quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A Raiva escapou para as redes sociais



Todos sabemos, procuramos esconder mas ela escapa pelas frinchas e, ainda bem. A Raiva. As emoções positivas mantêm-se em alta, e são no essencial o discurso da auto-ajuda. Não questiono as boas intenções que podem estar por trás da auto-ajuda e do apelo às emoções positivas e à pregação do bem, mas o resultado não pode ser bom. Porquê? Porque os sentimentos negativos fazem parte de nós, constituem-nos.

A psicanálise, naturalmente, mal-amada, foi em parte responsável por dar a conhecer ao mundo as profundezas do ser humano. Um dos maiores contributos da psicanálise foi o seu maior pecado, desvelar-nos. Mas talvez o maior de todos, tenha sido o de “autorizar-nos” a sentir tudo o que há de malévolo: raiva, inveja, ciúme.

Para evitar riscos de explosão devido à repressão dos sentimentos negativos, a mente arranja válvulas de escape e, parece que as redes sociais estão a desempenhar bem esse papel.

Então a psicanálise abriu a porta do jardim zoológico e entrámos num vale tudo?! Há uma diferença entre agir os sentimentos hostis e senti-los, reconhece-los em nós, sem muita da culpa que normalmente se faz presente. Se eu puder reconhecer as coisas em mim posso senti-las e transformá-las, ao invés de as colocar no mundo externo e agir sobre ele, como acontece em muitos tiroteios.

Nós não somos anjos. Tudo bem. Não estamos no Céu.



Psicoterapia

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Nostalgia

A ideia de que a nostalgia é um sentimento negativo é generalizada e a estreita relação entre nostalgia e depressão não é de hoje: “O deprimido é aquele que vive do/no passado”.

A nostalgia foi originalmente descrita como uma "doença neurológica de causa essencialmente demoníaca" pelo médico Suíço Johannes Hoffer em 1688. A nostalgia foi considerada uma doença desde o século XVII devido aos sintomas encontrados em soldados pelos médicos militares: desejo de regressar a casa, acompanhado de dor. Nostalgia: Nostos – desejo de voltar para casa; Algos – a dor que o acompanha.

No século XIX e XX a nostalgia continuou a ser considerada uma patologia, sendo exemplo disso a “psicose emigrante” ou certas formas de “melancolia”.

Quando o Dr. Sedikides, TimWildschut e outros colegas de Southampton começaram a suas investigações sobre a nostalgia descobriram que se tratava de um sentimento praticamente universal, encontrado inclusive em crianças a partir dos 7 anos. Os temas em volta dos quais a nostalgia se desenvolve eram muito semelhantes: reminiscências sobre amigos e familiares, casamentos, músicas, pôr-do-sol. Em síntese, acontecimentos em que o protagonista está rodeado de figuras importantes em momentos significativos. A maioria dos sujeitos relata que esses pensamentos surgiam quando algo de mau acontecia ou quando se sentiam sozinhos e que essas memórias contribuíam para que se sentissem melhor.

A nostalgia demonstrou neutralizar a solidão, o tédio e a ansiedade, tornando as pessoas mais generosas e tolerantes com estranhos. Mas, não-há-bela-sem-senão. A nostalgia tem o seu lado doloroso, é um sentimento agridoce, pois nem todas as memórias são felizes. Mas, no geral, como referem os pesquisadores de Southampton, os elementos positivos superam muito os elementos negativos e o efeito final traduz-se numa vida com maior significado.

Segundo o Dr. Routledge "A nostalgia tem uma função existencial crucial", ela traz à mente as experiências queridas que nos asseguram que somos pessoas de valor e que temos vidas significativas”.

As memórias, principalmente as boas, mas também as más, são o nosso maior património. Por que não começar a dar-lhes mais uso?!


psicologia clínica

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ruído de Passos


Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava.

Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

— Quando é que passa?
— Passa o quê, minha senhora?
— A coisa.
— Que coisa?
— A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
— Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
— Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
— Não importa, minha senhora. É até morrer.
— Mas isso é o inferno!
— É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? essa falta de vergonha?

— E o que é que eu faço? ninguém me quer mais… O médico olhou-a com piedade.
— Não há remédio, minha senhora.
— E se eu pagasse?
— Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
— E… e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?
— É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a em baixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo.

Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.
A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.


Clarice Lispector. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998


psicologia clínica