segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ruído de Passos


Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava.

Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

— Quando é que passa?
— Passa o quê, minha senhora?
— A coisa.
— Que coisa?
— A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
— Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
— Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
— Não importa, minha senhora. É até morrer.
— Mas isso é o inferno!
— É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? essa falta de vergonha?

— E o que é que eu faço? ninguém me quer mais… O médico olhou-a com piedade.
— Não há remédio, minha senhora.
— E se eu pagasse?
— Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
— E… e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?
— É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a em baixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo.

Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.
A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.


Clarice Lispector. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998


psicologia clínica

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