segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A descoberta do vazio e a criação do sentido


Há um momento mais importante do que a primeira palavra ou o primeiro passo de uma criança: a descoberta do vazio. O que fazemos diante dele é também o que nos torna pais e mães.

" - Os filhos dão muita alegria e tudo o mais que se costuma dizer, mas também, e isso não se costuma dizer, dão muita pena, permanentemente, o que não creio que mude nem quando forem maiores. Você vê a perplexidade deles diante das coisas, e isso dá pena. Vê a boa vontade deles, quando estão a fim de ajudar e acrescentar algo próprio mas não podem, e isso também dá pena. Dá pena a seriedade deles e dão pena suas brincadeiras elementares e suas mentiras transparentes, dão pena suas desilusões e também suas ilusões, suas expectativas e suas pequenas decepções, sua ingenuidade, sua incompreensão, suas perguntas tão lógicas e até a ocasional má intenção que possam ter. Dá pena pensar quanto lhes falta aprender e no longuíssimo percurso que têm pela frente e que ninguém pode fazer por eles, apesar de estarmos há séculos fazendo e não vejamos a necessidade de que todos os que nascem devam começar outra vez desde o início. Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?" ( “Os Enamoramentos”,  Javier Marías)

Lembro-me do momento exato em que olhei para a minha filha e senti essa dor, que era a dor que eu achava que pudesse ser a dela ou que tinha a certeza de que um dia seria a dela.

Minha filha tinha uns três ou quatro anos e estava sentada no chão tentando brincar. Eu via o seu esforço e via o seu fracasso. Ou talvez apenas estivesse projetando nela o que sabia que seria seu embate mais ou menos eterno. Mas creio que não, acredito que já era angústia o que havia no seu rostinho redondo, já era perplexidade diante da aridez de alguns dias. Lembro-me de que, naquele momento, as lágrimas pingaram dos meus olhos, como de uma torneira mal fechada. Eu soube ali que jamais poderia tapar aquele buraco, que teria de testemunhar para sempre aquela luta íntima na qual cada um de nós está só. Sempre só. Eu assistia a ela desde já, tão pequena, tão frágil, tão confiante no meu poder ilusório, debatendo-se com a vida. E para sempre diante dela eu pingaria como uma torneira mal fechada. Era um momento silencioso entre nós – e as cartas já estavam dadas muito antes de nós.

É pelo consumo – e aí possivelmente nunca antes como agora – que se tenta tapar esse buraco aberto no peito dos nossos filhos. Um objeto seguido de outro objeto, a ilusão de que algo foi preenchido com duração cada vez mais curta, o desejo pelo produto seguinte cada vez mais imperativo, a frustração sempre abissal entre um e outro. Com alguma imaginação, é possível enxergar um filme de zumbis nas cenas de shopping, pequenos arrastando grandes por corredores iluminados, em busca não de cabeças humanas, mas de mercadorias para triturar com dentes que não estão na boca.
   
Mas não protegemos nossos filhos deste vazio, não há como protegê-los daquilo que é uma ausência que nos completa. Penso que este é o momento crucial da maternidade e da paternidade. Cada um de nós, que se sabe faltante, diante da falta que grita no filho. Quando me vi diante desse abismo, como a personagem de “Enamoramentos”, ela num momento muito diverso e muito mais limite do que o meu, lembro-me de me sentir envolta em melancolia. Eu soube ali, naquele instante prosaico em que minha pequena filha procurava por algo que talvez não pudesse ser encontrado em nenhum lugar além dela mesma, que eu haveria de conviver com uma falência dali em diante. Minha melancolia não se devia às dificuldades de uma maternidade precoce – mas à certeza de que proteger minha filha era uma missão desde sempre fracassada.

Ao olhar para minha própria filha naquele momento em que eu sabia que a máquina do mundo se abria diante dela para mostrar seu enorme estômago vazio, lembro-me de que, por um momento, pensei em alcançar talvez um outro brinquedo ou lhe oferecer um chocolate (…) Mas meu pensamento não virou gesto. Eu sabia que tudo o que eu podia fazer era me manter em silêncio. Que ser mãe, naquele momento, era ser capaz de vê-la debater-se com o vazio, testemunhar o início de seu longo embate vida adentro. E acho que ali, como deve acontecer com os pais e mães que percebem esse momento exato, uma fissura nova se abriu em mim. Esta que para sempre me faria pingar como uma torneira mal fechada.

“Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?” (…) a resposta talvez seja a de que não exista sentido. E exatamente por não existir, só podemos mostrar aos nossos filhos, porque isso é algo que se mostra, não que se diz, que a tarefa de uma vida humana, desde sempre e para sempre, é criar sentido onde não há nenhum. Inventar uma vida é a tarefa que faz de todos nós ficcionistas. E, em geral, uma vida que faz sentido é aquela em que os sentidos são construídos para serem perdidos mais adiante e recriados mais uma vez e sempre outra vez. É o vazio, afinal, que nos faz inventar uma vida humana – e não morrer antes da morte.

É o que fazemos como pais neste momento em que um filho descobre o vazio, um momento mais importante do que a primeira palavra ou o primeiro passo ou o primeiro dente, que também nos torna pais. É preciso aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um ato profundo de amor. Um momento sem palavras em que nosso silêncio diz apenas que a tarefa de criar uma vida que faça sentido é dele, pessoal e intransferível. E tudo o que poderemos fazer é estar mais ou menos por perto, ainda que nada possamos fazer.


Excertos de: "A dor dos filhos", Eliane Brum
Revista Época 5.11.2012

psicologia clínica

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