“Foi-se o tempo em que … bastava “apenas um
olhar do pai” para que as crianças se reposicionassem no seu lugar de filho.“Nesse
outro tempo” tínhamos a impressão que tudo tinha o seu “lugar”.
Nessa
época não se ouvia falar em hieractividade. As crianças eram definidas como
seres mal-educados que precisavam de uma educação rígida e rigorosa para se
tronarem adultos civilizados.
…a
religião e a tradição asseguravam o lugar do pai na família. … a autoridade do
pai era sustentada não apenas pela mãe dentro de casa, mas, na esfera pública e
politica, através da religião e dos costumes. Nesse mesmo lastro residia a
autoridade do professor e dos adultos em geral.
Esse
cenário começou a mudar a partir de um longo processo de transformações
históricas e sociais que solapou a tradição e a religião enquanto organizadores
da família e da sociedade.
A
valorização da criança produzida pelo capitalismo, em que a mesma passou a
sustentar a promessa de fabricação do adulto de futuro, produziu não apenas a
valorização da mulher como mãe, mas, instituiu uma preocupação do estado em
limitar e regular cada vez mais os poderes do pai, visando proteger a mulher e
os filhos da sua arbitrariedade.
O
filho tornou-se propriedade privada da mulher-mãe. Ao pai, restou um colchão ao
lado da cama do casal, agora ocupado pela mãe e pelo filho. Quando ele
intervém, é logo interpelado pela sua mulher com um “cala a boca, você não sabe
nada”. O homem-pai viu-se reduzido a uma criança que não sabe nada, nem sobre a
vida doméstica nem sobre os filhos. Ela briga com ele como briga com uma criança:
“não faça isso! Faça aquilo. Você não sabe de nada!” Diante dessa mãe
omnipotente, o homem viu-se reduzido a uma criança impotente.
Pois
bem, se na família patriarcal a autoridade era atribuída ao pai, na família
moderna a mãe passou a ocupar esse lugar.
Diante da crise de referências instituída a
partir da queda da tradição, o pai, não sabendo qual seu lugar, viu-se reduzido
a uma condição infantil, ora toma a mãe como modelo de relação com os filhos,
funcionando como uma “segunda mãe”, ora se identifica com a criança, demandando
à mãe mais cuidados do que deveria.
Como
consequência dessa crise de referências, temos encontrado um cenário muito
assustador: crianças que dormem com os pais, ainda usam fraldas apesar da
idade, têm dentes mas ainda tomam mamadeira. São grandes em peso e altura, mas
vivem no colo dos pais.
As
crianças não conhecem a frustração. Privadas da intervenção educativa, pouco a
pouco vão-se tornando pequenos monstros assustadores e demandantes: querem
“tudo” e ao mesmo tempo “nada”. As crianças tornaram-se pequenos tiranos e os
pais escravos da tirania dos filhos.
Quando
essas crianças chegam à escola … não conseguem concentrar-se e não aprendem.
Ao
não reconhecer a desorganização da criança como proveniente da sua própria
renúncia, os pais recorrem a um “outro-especialista” buscando uma resposta
sobre o que se passa com o seu filho. Este por sua vez, capturado numa formação
organicista pautada no modelo biomédico – modelo que reduz todo e qualquer
problemática humana a um defeito no funcionamento biológico – vê-se obrigado a
diagnosticar a má educação da criança como hiperactividade.
Impotentes
face à demanda dos pais e das escolas, os médicos medicam. Aliás, o que
poderiam fazer além de medicar? … Talvez os médicos pudessem dizer: ”Seu filho
precisa limites!!!”. Mas certamente seriam considerados maus médicos. Pois, ao
denunciar a necessidade de limites, denunciariam as renúncias educativas dos
pais!
Não
sabendo o que fazer com os pequenos tiranos, solicitam à ciência e à medicina
algum limite, mesmo que seja químico!
Como
sabemos, um adulto precisa aprender a viver e a ter horários para dormir, assim
como o adolescente precisa aprender modos de relacionamento com o outro para
transar. Por isso fica a pergunta: Será que uma criança poderia prescindir dos
adultos para se tornar civilizada? Ou de facto acreditam que uma dose diária da
“droga” seria suficiente para educá-la? Depois não me venham com campanhas
“Crack nem pensar!!!”
Transcrição
parcial (adaptada) do artigo: A fabricação da loucura na infância, Michele
Kamers
Sem comentários:
Enviar um comentário