Ao
contrário de Amour, de Michael Haneke, que parece ter-nos roubado a capacidade
de transformar em palavras o que sentíamos pelo esmagamento da intensidade
afectiva a que somos sujeitos, Jagten (A Caça) de Thomas Vinterberg (Dogma 95),
obriga-nos a procurar palavras para verbalizar o insuportável desconforto de
nos vermos espelhados na escuridão da alma humana. Não querendo entrar em
grandes comparações, digo apenas que a Palma de Ouro ficaria MUITO melhor
entregue ao filme de Vinterberg, que teve em Mads Mikkelsen o prémio de melhor
actor.
Não me vou perder em
elogios aos brilhantes actores que contracenam com o magistral Mikkelsen.
Somente dizer que Annika
Wedderkopp (Klara-criança) com o seu olhar doce e perdido faz-nos sentir que a
sua fragilidade e desamparo só pode ser real.
Apesar
da liberdade de cada um pensar que o filme trata desta ou daquela questão
(também vou exercer a minha), o tema principal do filme, como o próprio
Vinterberg referiu numa entrevista, não é a pedofilia, como seria fácil supor.
Segundo o realizador a ideia para o filme foi-lhe apresentada por um psicólogo,
e nela estavam as fantasias de abuso sexual criadas pelas crianças. Uma década
depois, quando procurou fazer terapia, Vinterberg decidiu ligar ao mesmo
psicólogo dizendo-lhe: “Para ser educado, decidi ler aquele material e fiquei
chocado” com o elevado número de falsas acusações de pedofilia.
Para
os que estão familiarizados com a Psicanálise o tema das fantasias de abuso
sexual não são novas. Freud, nos seus trabalhos iniciais, desenvolveu a “Teoria
da Sedução” onde, com base nas descrições dos seus pacientes e da sua
auto-análise terá considerado que as crianças teriam sido sujeitas a seduções
de cariz sexual por parte dos adultos, principalmente familiares. Perante
alguns factos Freud viu-se forçado a abandonar as suas formulações acerca da
cena de sedução e a substituir a crença na realidade desta cena pela suposição
de que a sedução seria uma construção, em termos de fantasia, do próprio
sujeito. Assim, a cena de sedução não possui correspondência na realidade
externa – apesar de recorrer a alguns indícios dessa realidade – mas, trata-se
de uma construção, uma “realidade psíquica”. Em 1897 numa carta a Fliess, Freud
expressou a sua insatisfação com a teoria da sedução, afirmando ter deixado de
acreditar na “neurótica”. (Para os interessados no tema, é importante referir
que há nesta questão muitas nuances, que permitem várias leituras sobre o
abandono da teoria de sedução).
Agora
o filme
A
Caça é um filme absolutamente claustrofóbico onde o espaço e o tempo (bomba
relógio) se encolhem de forma pautada até ao intolerável. Como num terrível
pesadelo, queremos gritar mas da nossa boca não sai nenhum som, ninguém nos
pode ouvir, ou melhor, ninguém nos quer ouvir. Queremos fugir mas não podemos.
Estamos destinados, como Lucas, a viver sem esbracejar. Estamos a ver tudo,
sabemos tudo, e sofremos porque nós somos Lucas. Presos num magnetismo
inexplicável assistimos colados na cadeira, com suores frios à mistura, a um
filme pungente, devastador.
Este
é um filme sobre o ser humano, um objecto de estudo, onde da pureza, da
inocência e do horror na infância se passa para tormentos da adolescência e se
termina numa despedaçada vida adulta. Todos estes tempos se cruzam e são
interpretados por personagens diferentes. Vinterberg põe a nu a agressividade existente
em todos nós e a forma fácil dela se fazer presente. Espicaçado na capacidade
destruidora, o grupo (caçadores) encontra na presa (caça - Lucas) a satisfação
do instinto destrutivo. Dirigido com uma crueza arrepiante, Vinterberg, põe a
nu os aspectos sombrios da alma humana, seja criança, adolescente ou adulto.
Sendo, neste caso, uma criança (as crianças gozam de um olhar particularmente
distorcido por parte dos adultos), o sentimento é ainda mais aterrador.
Este filme deveria passar em todas as faculdades de Psicologia. Não faria mal nenhum a magistrados, e a todas a áreas do saber ligadas a esta problemática.
Mais
que imperdível, indispensável
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