Há
anos, a filósofa francesa Joëlle Proust foi capaz de afirmar que o sofrimento psíquico
não teria relações com a forma com que o paciente reflete sobre seus sintomas a
partir de suas próprias convicções e motivações.
Com
isso, ela apenas dava forma a um princípio que parece guiar dimensões maiores da
psiquiatria contemporânea. Ou seja, tudo se passa como se não houvesse relações
entre a maneira com que sofremos e a maneira com que pensamos e
procuramos justificar nossas vidas a partir de valores e normas.
Essa
é uma boa maneira de evitar o trabalho mais doloroso exigido pelo tratamento de
modalidades de sofrimento psíquico, a saber, a crítica dos valores, normas e
formas de pensar que constituem, tacitamente, nosso horizonte de uma vida
bem-sucedida.
A
fim de evitar tal trabalho crítico, que certamente é o que há de mais difícil,
parece que nos tranquilizamos com ideias como as da professora Proust. Elas
acabam por servir para fortalecer a crença de que só haveria cura lá onde
abandonássemos o esforço de pensar sobre nós mesmos. No fundo, talvez porque
ainda estejamos presos a resquícios deste antigo paralelismo que associava, por
exemplo, a melancolia ao ato de "pensar demais".
Décadas
atrás, François Truffaut fez um belo filme sobre uma sociedade no futuro onde a
polícia queimava livros porque eles trariam infelicidade. Melhor seria garantir
a felicidade social por meio de uma política de uso exaustivo de medicamentos.
Tal
filme foi a metáfora perfeita para um fenômeno que o sociólogo Alain Ehrenberg chamou,
décadas depois, de "uso cosmético" de antidepressivos e afins.
Por
"uso cosmético" entendamos o uso de larga continuidade que acaba por
visar conservar performances sociais bem avaliadas, evitando ao máximo a
experiência com transtornos de humor. Ele é o resultado inevitável do modelo de
medicação que impera atualmente. Trata-se de uma distorção daquilo que
deveria ser a regra, a saber, o uso focal ligado exclusivamente a situações e
momentos de crise aguda.
Tal
uso focal procura apenas garantir as condições de possibilidade para que o verdadeiro
tratamento ocorra. Um tratamento que poderá mostrar como, se é a reflexão que
nos adoece, é ela também que nos cura.
O
pensar como doença
Vladimir
Safatle
Folha
de S. Paulo, 27/11/2012
psicologia clínica
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