O
Mal do Século
Tem-se
afirmado, repetidamente, que a depressão é o mal do século. No entanto,
acredito que valha a pena questionar a afirmação. Não é que se possa negar o
grande contingente dos ditos deprimidos, que vai desde a baixa de humor, a
apatia, o desânimo e o pessimismo, até os conteúdos nostálgicos e tristes, que
emprestam colorido acinzentado à vida. Nem tampouco pode-se ocultar o fato do
aumento de prevalência da doença depressiva em suas multifacetadas
apresentações. É verdade que a depressão tem sido responsável por muitos
estragos em muitas vidas e bolsos ? que o confirmem os receituários recheados
de Prozac ou as farmácias naturais que preparam as fórmulas dos famigerados
Florais de Bach. Para não falar das depressões mascaradas, constantes presenças
nas salas de espera dos médicos de todas as especialidades, e responsáveis por
tantos tratamentos e exames desnecessários e até cirurgias inúteis.
Além
disso, a depressão é parceira certa nas mesas dos bares de cada esquina ou
clube da terceira idade, onde pseudo soluções propõem um inacessível e
constante bem viver, ou nas noites insones dos freqüentadores das salas de bate
papo virtual. É inevitável que o pessimismo e a frustração não sejam respostas
aos desafios incessantes do progresso, às necessidades permanentes do mercado,
à competição profissional e social desenfreadas. A sensação de incapacidade,
incompetência para estar sempre em dia, e a percepção da impotência em
consegui-lo, tornam-se a cada dia mais insuportáveis. Em função disso,
paralisados, muitos são incapazes de reagir.
Mas,
talvez, um outro tipo de mal merecesse, quem sabe, a nossa reflexão! Um mal que
sorrateiramente se insinua e dissemina no seio das sociedades. Quase
imperceptível, sublinear e camuflado. Sim, camuflado, pois quando se fala em
perversão, atribui-se-lhe logo o conceito de maldade ou aberração. Mas apesar
do mesmo adjetivo ser usado para designar o mau (perverso) e aquele portador de
estrutura psíquica perversa (perverso), a perversão enquanto estrutura psíquica
não pode ser confundida com a crueldade ou a anormalidade.
Nos
séculos passados, a psiquiatria considerava que “neuróticos eram os indivíduos
que sofriam”, psicóticos “os que sofriam e faziam os outros sofrerem”, e
psicopatas “os que não sofriam mas, impunham sofrimento aos outros” Os tênues
limites entre os que cometem atos de crueldade e, os ditos normais, acabaram
por determinar a alteração da nomenclatura e da etiologia, originando-se assim
a denominação de sociopatas para marcar o desempenho dos fatores sociais.
A
Psiquiatria Forense descreveu, com riqueza de detalhes, os vários tipos de
perversão, dando-lhes nomes complicados e curiosos. Kraft-Ebing escreveu um
tratado clássico, em dois volumes, sobre o tema. Mas foi o Marquês de Sade quem
relacionou de forma inequívoca, a prática das perversões às sensações de prazer
e à excitação sexual. De modo despudorado e constrangedor, o Marquês que
termina os dias na prisão, escrevendo com sangue suas memórias, pois o papel
lhe foi negado, incita e desafia todo ser humano a provar que, nas condições
mais inesperadas, é possível ocorrerem aos mais probos e puros, os sentimentos
mais abjetos, as emoções mais torpes e bizarras.
São
essas mesmas emoções contraditórias e absurdas, surgidas às vezes da
experiência do sofrimento físico e dor presumíveis, que traduzem,
inexplicavelmente, um prazer quase total que intriga a lógica e confunde a
razão. Freud, ratificando Sade, declarou em Três ensaios sobre a
sexualidade infantil, que: “a neurose é o negativo da perversão”, querendo com
isso asseverar que os conflitos neuróticos calcaram-se nos mesmos íntimos
impulsos que se liberaram, incondicionalmente, e sem controle, buscaram a
realização como atos perversos.
O
que de mais incrível ocorre, é que os mesmos impulsos inconscientes que
determinam desejos tresloucados e, por vezes, cruéis, habitam o psiquismo, até
dos mais aparentemente normais. A Psicanálise contribuiu decisivamente para a
compreensão dos fenômenos perversos ao relacioná-los com a sexualidade. Os
complicados avatares da sexualidade humana, no cumprimento do seu trajeto desde
os primórdios da fase oral, passando pelas atribulações da fase anal, quando o
ser humano vai, pela primeira vez, defrontar-se com a negação e a repressão,
irá, se tudo correr bem, culminar, finalmente, na primazia genital.
Essa
primazia não exclui, porém, a permanência de traços perversos, resquícios
eternos no psiquismo humano, da evolução da sexualidade. Sua presença
evidencia-se nas preliminares dos atos amorosos introduzida por contatos dos
lábios nos beijos, carícias em diversas partes do corpo, todas elas límpidas
representantes das etapas prévias da sexualidade genital, aceitas como normais.
Não sem motivo, Freud referiu-se às crianças que, até então, eram, e por vezes,
até hoje, ainda são consideradas símbolos de pureza, como “polimorfos
perversos”.
As
descobertas freudianas foram tão rejeitadas, no seu tempo por escandalizarem o
mundo, ao mostrar o ser humano em toda a sua nudez. A loucura, evidenciou Freud
está muito mais próxima da normalidade do que se poderia supor. Aliás, muito
antes de Freud, Kaplan já teria assinalado que “a diferença entre o psicótico e
o normal, é que ‘o psicótico faz o tempo inteiro’, o que o normal só faz de vez
em quando”. Bem, assim, só se poderia falar de perversão sexual, quando o
orgasmo só fosse alcançado mediante a realização de um ato, dito perverso, como
por exemplo, a substituição do ato sexual por uma carícia prévia ou o uso de
fetiche para obter orgasmo.
O
homem, até então, dono e senhor dos seus atos e pensamentos viu-se, de repente,
assujeitado ao sabor da vontade e incoerências do inconsciente, refém de forças
desconhecidas e desconexas, que não obedecem ao tempo nem à lógica, não
conhecem limites nem contradições. Seria assim a perversão algo tão estranho ao
ser humano? Seria justo atribuir a causas externas algumas das mais condenáveis
atitudes dos seres humanos?
É
na própria Psicanálise que encontraremos, ainda, mais respostas a perguntas
como essas, quando mais tarde, Jacques Lacan retoma o estudo da perversão sob a
ótica do desejo e da castração. Lacan revê a questão, considerando a atitude da
criança, perturbada pela idéia da castração e a impossibilidade de admiti-la.
Desse modo, a criança trata de desmenti-la e, para tal, desmente a castração
materna, ocultando-a com uma espécie de véu. O objeto do desejo do perverso é,
então, um fetiche, algo que recobre o desejo, mas, ao mesmo tempo, deixa
perceber, com a tentativa de obturá-lo, a impossibilidade de recobri-lo.
Uma
das maiores características do perverso, contudo, como destaca Joel Dör, é a
sua necessidade de transgressão. Sua relação com a lei é sempre de
transgressão. Ele precisa transgredi-la, para comprovar que ela existe. Mas
para tal, precisa desvalorizá-la, desmerecê-la, e a primeira lei que transgride
é a lei do pai.
A
criança ao nascer estabelece uma relação diádica com a mãe, considerando-se
parte dela, algo que a completa, assim, a mãe é inteira, e ela (criança), seu
falo. Por isso, o bebê considera que a mãe não é castrada e nem tampouco ele o
é. Nessa relação em que os dois se completam, vai haver a interferência de um
terceiro – o pai – que rompe a relação, interpondo a lei entre o filho e a mãe.
Ao sentir que o olhar da mãe se volta para o pai, é que o bebê vai perceber que
a mãe não é completa e que ele não a completa. Essa é a primeira noção de falta
e de castração, introduzida pelo pai que também introduz a lei, interdita o
incesto, mas abre caminho para o desejo, pois permite ao filho dirigir-se a
outras mulheres nas quais buscará o objeto de desejo.
Essa
figura paterna empalidecida na sociedade atual, falha em exercer sua função,
favorecendo a transgressão da lei, ou melhor, permitindo que o sujeito se
insurja a obediência às leis. A excessiva permissividade patriarcal se incumbe
de favorecer, com a cumplicidade, às vezes omissa, o resto da oportunidade de
transgressão. Sua maneira transgressora de ser, é a marca da relação social do
perverso. Suas transgressões, além de constantes, demandam ainda um terceiro
que as confirme e referende. Esse olhar de um outro sobre a transgressão,
proporciona ao perverso uma satisfação especial e única.
Mas
o mundo tem assistido através dos séculos várias condutas bizarras e malvadas,
que só se explicariam do ponto de vista da consciência e da razão, pelo prazer
perverso do sadismo ou pela vingança mórbida. Assim, viram os romanos, as
atrocidades brutais e a desregrada atuação da sexualidade de Calígula, como
vivenciamos, nós brasileiros, muitos séculos depois, as barbáries da
escravidão, do mesmo modo que testemunharam atônitos os romanos, a sua Roma
querida arder, enquanto Nero se comprazia com o espetáculo da dança das
labaredas e os gritos desesperados da população, do mesmo modo, mais tarde, os
infelizes iraquianos sofreram e testemunharam as torturas e mutilações de Sadam
Hussein. Para não falar da cumplicidade da Igreja no holocausto, como da sua
participação ativa nos tristes episódios da Inquisição na Idade Média.
O
novo homem do século XXI que transpôs o espaço sideral e rompeu a barreira do
som, comunica-se, em segundos, com o mundo inteiro via Internet ou telefones
celulares, enviando mensagens e imagens como lhe aprouver, interage nas tvs a
cabo e acompanha guerras, ao vivo, com imagens de alta precisão. Dispõe de
veículos possantes e armas fantásticas. Consegue por meio de drogas, orgasmos
duradouros e estados de excitação crescente. Vive uma sexualidade desreprimida
e solta, cuja permissividade e promiscuidade lhe permitem quase todos os
possíveis prazeres e emoções das mais esdrúxulas.
Casas
noturnas para sexo grupal são anunciadas escancaradamente e as trocas de casais
encaradas com naturalidade. As relações sexuais são realizadas alternadamente,
ou até concomitantemente, com parceiros de sexos diferentes, alegando-se o
direito inequívoco do gozo da bissexualidade, que nada mais é, que a tentativa
de não submeter-se à lei da sexuação, ou seja, não ter de optar por nenhum dos
sexos e valer-se do uso dos dois.
O
que seria interditado a esse homem? O que lhe falta? Que precisa procurar,
ainda, para ser feliz e completo? É o desmentido da sua condição de ser
faltante e incompleto que obstrui a possibilidade do desejo enquanto
determinante da condição humana, razão de ser do sujeito, mola propulsora que o
mantém singular na comunidade dos humanos. Esse ser que não se indaga mais, não
tem por que lutar, não precisa desejar e não se frustra nunca, é um arremedo de
sujeito. E porque não sofre, não tem como buscar solução. Porque não conhece a falta,
não tem porque questionar o desejo. Não precisa de buscar sua individualidade
porque a massificação é suficiente.
O
homem moderno sente-se dono e senhor do mundo e desafia as leis. É assim nos
atos terroristas da Palestina ou nos ataques alegados, como vingança, de
Israel. Os atentados de 11 de setembro ou as guerras do Afeganistão ou do
Iraque, desrespeitando as leis do Conselho da ONU e os apelos de todo o mundo
contra a batalha, ou mais perto de nós, os traficantes que metralham escolas e
ruas, hotéis e até palácios de governo após avisos por telefone dos atos que
iriam perpetrar. Ou ainda, as atitudes dos corruptos que indiferentes às leis,
quando se trata de dinheiro público, manipulam-no a seu bel prazer em proveito
próprio. Ou, então, as escusas ações que visam fraudar provas ou documentos
para ingressar em faculdades, disputar vagas para empregos, e nomeações de
parentes e amigos para ocupar cargos bem remunerados do governo.
O
Brasil de hoje é o paraíso da perversão que descontrolado e sem rumo, arrasta a
nação para um caos social inimaginável. Crianças e adolescentes envolvem-se em
brigas violentas e, às vezes até, se tornam homicidas. Alunos ameaçam e matam
diretores e professores. Jovens de classe média alta queimam vivos mendigos e
índios para se divertir em tediosa noitada de fim de semana. Ao mesmo tempo, no
resto do mundo, jovens armados invadem escolas para assassinar colegas.
Metralham-se pessoas desconhecidas em supermercados e restaurantes e chega-se
ao extremo de adaptar um automóvel para permitir atirar de dentro dele, sem ser
visto, com a finalidade de matar a esmo com esconderijo garantido. É o
inconsciente sem peias e sem pudores (o que não tem governo nem nunca terá)
numa liberação geral.
A
perversão é essa terra de ninguém, espaço controverso, fronteira da psicose e
limite da estrutura neurótica. Estreita passagem que marca em cada ser humano,
seus traços na fantasia, seus rasgos na criação. A perversão é uma “père
version”, disse Lacan certa vez, versão que introduz algo novo, o fetiche que
privilegia, o olhar que configura o desmentido e que incita à transgressão.
Versão que vem de verso, do que está por trás e não é visto, mas é, como se
pudesse sê-lo, porque suposto. Que é também verso-frase-poema, criação, e como
tal, possibilidade de transgressão licença poética.
O
poeta é um eterno transgressor por ser capaz de ver aquém e além, de escandir
palavras, desmentindo-as no que têem de mais fixo, a forma. Perverter é Ver
para TER? No momento em que, a versão patriarcal não mais se sustenta, porém, a
perversão surge como via de saída, mas ao mesmo tempo, encurrala o homem em sua
própria angústia. A angústia de se saber dono e senhor absoluto do nada que
pretende alcançar e controlar, mas que lhe escapa, impreterivelmente, sem lhe
deixar a sensação de novas possibilidades.
Marli
Piva Monteiro
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